Publicado em Janeiro-fevereiro
Medicina brasileira e ética: Uma leitura sobre terminalidade e espiritualidade nos códigos de ética médica brasileiros e sobre diretrizes éticas de alguns países
Por Pe. Leo Pessini, mi
Introdução
A medicina brasileira ganhou um novo Código de Ética Médica que entrou em vigor no início de 2010. Um longo processo de revisão do código anterior, de 1988, durou dois anos, teve ampla participação da sociedade e possibilitou essa nova conquista. No intuito de colaborar com a discussão e o aprofundamento das questões éticas, procuraremos refletir sobre dois temas fundamentais: questões éticas sobre o fim da vida e interface entre medicina e espiritualidade. Nossa busca reflexiva se faz com base em um estudo da tradição histórica da ética médica brasileira codificada, fundamentando-se também em uma leitura ética comparada de como a medicina em alguns países já incorporou como diretriz ética, no conteúdo de seus diversos códigos de ética, essas questões que nos propomos estudar.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão máximo no país de regulação do exercício profissional dos 350 mil médicos que atuam no Brasil, iniciou, ao término de 2007, um processo de revisão do Código de Ética Médica de 1988. Passados 22 anos, muita coisa mudou na área dos cuidados da saúde em termos de consciência cidadã, do comportamento ético da população e dos profissionais. Passamos por uma verdadeira revolução tecnológica, que vem a interferir profundamente na vida humana, desde antes do nascimento até depois da morte. Estamos entrando na era genômica, da telemedicina e da nanotecnologia, somente para lembrar alguns âmbitos novos. Esses são alguns dos fatores que criam um cenário novo na esfera dos cuidados da saúde e exigem de todos nós reflexão, nova consciência, postura e diretrizes éticas.
A medicina brasileira, num espaço de quase um século e meio, mais precisamente 143 anos (1867-2010), utilizou-se de nove códigos de ética.
1. Questões de final de vida nos mais recentes códigos brasileiros de ética médica
Iniciemos a análise pelos códigos mais recentes. O Código de Deontologia de 1984, como os anteriores, aborda a tensão ainda existente entre o esforço de não causar sofrimento desnecessário ao paciente terminal e uma injunção que parece obrigar o médico a usar todos os recursos ao seu dispor para evitar o extermínio do enfermo (artigo 1º/1984). O alívio da dor e do sofrimento e o não apressar a morte do paciente continuam lado a lado sem indicação de como resolver o conflito ético entre as exigências de ambos. O artigo 29/1984 proíbe o médico de “contribuir para apressar a morte do paciente ou usar meios artificiais, quando comprovada a morte cerebral”. Introduz-se um novo conceito de “morte cerebral”, fruto da evolução técnico-científica da medicina num momento em que se discute muito sobre a definição de morte e as implicações dessa definição para a ética. Mas não esclarece e muito menos define seu sentido. É importante registrar, no entanto, que o conceito de morte cerebral aparece, pela primeira vez, no código de 1984, embora a questão já estivesse sendo discutida no âmbito médico desde seu surgimento em 1968, com o comitê de Harvard (EUA).
O Código de Ética Médica de 1988 reforça o direito do paciente de não ter seu tratamento complicado. O artigo 60/1988, com a proibição de “complicar a terapêutica”, retoma o artigo 23/1984. Outra preocupação expressa nesse código é a regulamentação de pesquisas médicas em pacientes em fases terminais de doença. O artigo 130/1988 proíbe o médico de “realizar experiências com novos tratamentos clínicos ou cirúrgicos em pacientes com afecção incurável ou terminal sem que haja esperança razoável de utilidade para o mesmo, não lhe impondo sofrimentos adicionais”.
Numa rápida visão do Código de Ética Médica de 1988 no que concerne às questões éticas de fim de vida, passados mais de 20 anos desde sua aprovação, percebe-se de imediato que vivíamos num contexto sócio-histórico-cultural de negação da finitude humana. Não se fala em término da vida e em como orientar o profissional médico a lidar eticamente diante da morte. No máximo, orienta-se o médico sobre como agir diante do “iminente perigo de vida” (art. 46, 56). O artigo 60 estabelece ser vedado ao médico “exagerar a gravidade do diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica”. O artigo 61, parágrafo 2º, dispõe que “o médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico”. O art. 66 proíbe o médico de “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal”. Embora não seja utilizada a palavra eutanásia, essa é a questão em pauta, contra a qual o código se posiciona.
O mais recente Código de Ética Médica brasileiro, que entrou em vigor no início de 2010, apresenta várias novidades, entre as quais uma no capítulo I, sobre princípios fundamentais, ao admitir a “finitude da vida humana”. Se considerarmos os 19 princípios fundamentais do código anterior (1988), concluiremos que o paciente “nunca” morre! É no mínimo curioso, pois se nega em princípio a realidade da presença da morte, ainda que ela sorrateiramente se introduza na prática clínica. Entre os princípios fundamentais (capítulo I), esse código consagra dois incisos à nossa questão em pauta, os incisos VI e XXII, que têm a seguinte redação:
VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para omitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.
No capítulo V, que trata da “relação com pacientes e familiares”, normatiza procedimentos médicos, dizendo ser “vedado ao médico” “exagerar a gravidade do diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica” (art. 35). O artigo seguinte, número 36, diz ser vedado ao médico abandonar o paciente sob seus cuidados. O parágrafo 2º afirma que “o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo, ainda que para cuidados paliativos”.
Nesse mesmo capítulo V, que trata da relação “com pacientes e familiares”, o art. 41 diz não à eutanásia nocaput e não à prática da distanásia e sim aos cuidados paliativos no parágrafo único:
É vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.Parágrafo único: em caso de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas e terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, de seu representante legal .
Após termos visto, de forma sobremodo objetiva, como a ética médica brasileira trabalhou as questões de término de vida nos numerosos códigos elaborados ao longo do tempo, verifiquemos alguns países em que a ética e/ou a deontologia médica codificada são previstas como diretrizes éticas para as questões de fim de vida
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